Era janeiro de 1968 e o amanhecer de mais um dia estava raiando
sobre a montanha Sambong, na Coreia do Sul, coberta de neve
há meio século, quando os quatro irmãos
Woo saíram para cortar madeira. Em uma clareira, encontraram
31 homens vestidos com uniformes do Exército
sul-coreano. Presumindo que fosse uma patrulha,
gritaram uma saudação. Os soldados estavam com
os rostos corados e encharcados de suor, apesar das temperaturas
abaixo de zero e do vento cortante em Paju, a apenas 16 quilômetros
da fronteira com o Norte. A maioria havia tirado as botas
e enrolado as mãos e os pés em cobertores para
evitar queimaduras de frio. O líder se apresentou como
"Capitão Kim", com seu sofisticado sotaque
de Seul, deixando os irmãos à vontade. Foi então
que um dos irmãos notou algo estranho: a insígnia
de um soldado estava de cabeça para baixo. Isso o deixou
desconfiado: havia meses, transmissões no Sul alertavam
os cidadãos para ficarem atentos a infiltrados. “Senhores,
vocês são do Norte?” perguntou o irmão
mais velho a Kim. "Sim, camaradas. Estamos aqui para
libertá-los e trazer o comunismo para a Coreia do Sul"
e "vocês podem se juntar a nós ou podem
morrer". Os "soldados" eram, na verdade, comandos
norte-coreanos que haviam cruzado a Zona Desmilitarizada,
após terem treinado por dois anos para esta missão:
assassinar o presidente sul-coreano Park Chung-hee, um ex-general
que havia ascendido ao poder por meio de um golpe militar
sete anos antes. Eles haviam sido enviados por Kim
Il-sung, fundador da Coreia do Norte e avô
de seu atual líder, Kim Jong-un. Os comandos passaram
os últimos meses de treinamento praticando o ataque
em uma maquete da residência presidencial de Park, a
Blue House ou Casa Azul, assim conhecida pela
cor de seu telhado.. Surgiu um debate entre os comandos
sobre o que fazer com os irmãos Woo. Se os lenhadores
revelassem a existência da equipe às autoridades,
o ataque seria comprometido. A decisão parecia clara
para Kim Shin-Jo, um comunista fanático, recrutado
aos 23 anos entre as fileiras regulares do Exército
norte-coreano para se juntar a uma equipe de forças
especiais de elite chamada Unidade 124: a morte dos
lenhadores. Mas o solo estava congelado, tornando impossível
enterrar os corpos. Então, o Capitão Kim, cujo
nome verdadeiro era Kim Jong-ung, redigiu um contrato, dando
uma palestra aos irmãos sobre as virtudes do comunismo
e a unidade do povo coreano, e prometendo-lhes um lugar no
governo revolucionário que seria formado quando a missão
da Unidade 124 estivesse completa: “Vocês podem
se juntar a nós ou morrer”, disse-lhes. Os lenhadores
então assinaram o pacto e foram libertados e foram
direto para um posto militar sul-coreano e relataram o encontro.
Os invasores ainda não sabiam, mas sua missão
estava fadada ao fracasso.
No dia em que o capitão Kim tentava persuadir seus
companheiros a matar os irmãos Woo, o USS Pueblo,
um navio espião americano, estava operando na costa
da Coreia do Norte. Tendo zarpado uma semana
antes de Sasebo, no Japão, o navio e seus 83 tripulantes
estavam monitorando a atividade naval soviética na
área, além de tentar reunir informações
sobre as atividades militares norte-coreanas. Por quase dois
anos, um conflito de baixa intensidade foi travado entre as
duas Coreias, baseado em táticas não convencionais.
O autoritarismo de Park e uma economia relativamente fraca
no Sul significavam que o Norte era, em alguns aspectos, o
mais forte e estável dos dois países. A preocupação
americana com a guerra
do Vietnã deu a Pyongyang a abertura necessária
para Kim Il-sung tentar reunificar a Península Coreana.
O que a tripulação do Pueblo não
sabia era que um ataque à Blue House estava
acontecendo em Seul, mas o plano dos comandos norte-coreanos
fracassou quase imediatamente após o encontro com os
irmãos lenhadores. Os militares sul-coreanos se mobilizaram
em busca dos invasores, que corriam para escapar de seus perseguidores
e completar sua missão. Vestidos com roupas civis,
incluindo sobretudos escondendo suas submetralhadoras, pistolas
e granadas de mão de fabricação russa,
os 31 comandos conseguiram passar por uma forte segurança
até um cruzamento perto de seu alvo. Os militares sul-coreanos
os caçavam há quase dois dias, mas de alguma
forma eles conseguiram escapar das patrulhas ou passar pelos
postos de controle. Agora, a apenas 350 metros de seu objetivo,
com a Blue House à vista, eles foram parados
por um chefe de polícia e dois policiais perto de uma
escola. O capitão Kim disse a eles que pertenciam a
uma unidade de contra-espionagem sul-coreana retornando de
um exercício, mas o chefe de polícia Choi não
acreditou. Ao notar os sobretudos volumosos, sacou a pistola
e exigiu saber o que carregavam, quando um dos comandos atirou
nele. Isso alertou os soldados da Guarnição
da Capital, que protegiam a residência presidencial,
e responderam imediatamente, iniciando um intenso tiroteio
com os norte-coreanos bem treinados. Um ônibus que transportava
civis foi atingido pelo fogo cruzado, matando vários.
Ao final, quase 100 pessoas estavam mortas ou feridas. Mas,
por mais que tentassem, a Unidade 124 não conseguia
se aproximar da Blue House. Seus defensores tinham
armas pesadas, até mesmo um tanque, e reforços
surgiam de todos os lados. Não havia como atravessar.
O capitão Kim deu a ordem para que os comandos se retirassem
e se dispersassem, com a maioria fugindo rumo ao norte. Porém
Kim Shin-jo seguiu seus próprios instintos,
não suas ordens. Ele estava amargurado com o fracasso
da missão e sentia que as decisões erradas do
capitão eram as culpadas e Shin-jo estava pronto a
sacrificar sua vida para matar o presidente Park, mas não
estava disposto a morrer em vão. Ele sentia como se
não tivesse conquistado nada na vida: nunca tivera
um relacionamento sério com uma mulher, já que
os comandos eram obrigados a ser solteiros, não comera
durante os dias de frio intenso e não disparara um
único tiro durante o tiroteio. Ele questionava não
apenas as ordens de seu líder, mas sua própria
existência.
Então, sozinho, ele fugiu de seus companheiros e desertou.
Por
volta das 13h20 do dia 23 de janeiro, navios norte-coreanos
que circulavam o USS Pueblo abriram fogo enquanto tentava
manobrar para longe. O americanos sinalizaram que estavam
operando legalmente em águas internacionais e que os
norte-coreanos não tinham o direito de interferir.
O breve confronto terminou com a rendição do
Pueblo, com um americano foi morto, enquanto os 82
tripulantes restantes foram feitos prisioneiros. A captura
do navio-espião ocorreu enquanto autoridades sul-coreanas
e americanas já se reuniam para discutir uma possível
resposta militar à tentativa de ataque à Blue
House. Com dezenas de militares americanos agora
nas mãos da Coreia do Norte, o presidente Lyndon B.
Johnson não estava disposto a fazer nada que pudesse
piorar a situação. Enquanto isso, os militares
sul-coreanos continuam sua perseguição aos comandos
que haviam atacado a residência presidencial e já
haviam matado pelo menos cinco, enquanto um havia se rendido:
Kim Shin-jo, o desertor. Ele foi capturado após ser
cercado em uma casa na montanha, perto de Seul. Todos os seus
companheiros da Unidade 124, exceto um, foram mortos enquanto
lutavam até a morte contra as forças sul-coreanas.
O comando sobrevivente, Pak Jae Gyong, foi aclamado como herói
ao retornar à Coreia do Norte e hoje é um alto
oficial militar e político, tendo sobrevivido a três
gerações de líderes norte-coreanos. Porém,
para Kim Shin-jo não haveria vitória. Ele foi
interrogado e suas armas foram inspecionadas enquanto os serviços
de inteligência buscavam apurar seu papel no ataque
fracassado à Blue House. Ele cooperou, e as
autoridades notaram que suas armas não haviam sido
disparadas. Mas essa decisão de não participar
da luta e de se render voluntariamente teve um preço
terrível. Por ser considerado um traidor, seus pais
e seis irmãos haviam sido julgados publicamente e fuzilados
perante um Tribunal Popular na Coreia do Norte. Os 82 homens
do Pueblo foram libertados em Panmunjom após
quase um ano em cativeiro, no qual enfrentaram tortura, campanhas
de doutrinação e privações, e
foram forçados a participar de campanhas de propaganda.
Quanto ao seu navio, transformado em um museu e atração
turística em Pyongyang, permanece na lista de serviços
ativos da Marinha
dos EUA como o único navio americano classificado
como "em mãos inimigas". Para Kim Shin-jo,
que preferiu ficar na Coreia do Sul após o fracasso
de sua missão e agora com 76 anos, as decisões
que tomou há cinco décadas pesam muito sobre
ele, mesmo que os eventos do passado tenham caído na
obscuridade. "Eu sobrevivi, mas meu coração
dói quando penso nos meus pais e irmãos que
deixei para trás e isso é algo que tenho que
levar comigo para o túmulo."