A concepção de uma Estratégia Militar sempre tem
como base a avaliação dos antagonismos internacionais
existentes ou potenciais, capazes de gerar uma situação
de necessidade de emprego de força para a preservação
da soberania ou dos interesses nacionais. As fontes destes antagonismos
podem ser reivindicações fronteiriças ou territoriais,
disputa de áreas de interesse econômico, diferenças
étnicas ou até mesmo sonhos megalomaníacos de algum
ditador. A História nos ensina que essas fontes sempre foram
um motivo para as guerras. Nos anos que se seguiram à Segunda
Guerra Mundial, com o mundo ainda se recuperando da destruição
e dos horrores daquele conflito, surgia uma luta silenciosa entre o
capitalismo e o comunismo, entre a OTAN e o Pacto de Varsóvia,
ou entre o Ocidente e a União Soviética pela supremacia
de uma ideologia sobre a outra e para manter o que haviam conquistado
até então, num período de pelo menos quatro décadas
da chamada Guerra Fria. Tudo isto temperado com um ingrediente macabro:
a constante ameaça de um conflito nuclear que poderia, em situações
extremas, aniquilar a maior parte da vida no planeta. No Hemisfério
Norte esta paranóia levou a maiores gastos militares em todos
os países que se sentiam potencialmente ameaçados pela
hecatombe atômica. O Brasil, por não participar ativamente
nem como ator principal nem como coadjuvante deste embate entre Leste
e Oeste, sentia-se pouco ameaçado e era ponto pacífico
que em caso de um novo conflito mundial estaríamos sob o guarda-chuva
protetor dos Estados Unidos. A Estratégia Militar vigente preconizava
a concentração das principais unidades das Forças
Armadas no eixo industrializado Rio-São Paulo e na região
sul do país, para fazer frente a uma possível porém
pouco provável agressão de nosso vizinho no Cone Sul,
a Argentina. Para tanto contávamos com equipamentos obsoletos,
a maioria excedentes dos estoques americanos.
Em termos internacionais nossa maior preocupação seria
a defesa das linhas de comércio do Atlântico Sul, tarefa
para a qual também não estávamos preparados adequadamente,
mas neste caso seria um esforço conjunto com países aliados
que tivessem interesses comuns nesta área do oceano. Somente
no início da década de 70 o país começou
a modernizar parte de seu aparato militar com a aquisição
de caças supersônicos Mirage III e F-5E Tiger,
novas fragatas da classe Niterói, construção
dos submarinos da classe Tupi e substituição
de parte dos equipamentos do Exército, inclusive com a produção
sob licença do fuzil
de assalto belga FAL. Houve incentivo ao surgimento de muitas indústrias
de material de defesa entre elas a Embraer e a Engesa, esta fabricante
dos veículos blindados sobre rodas Urutu e Cascavel
ainda hoje em uso e do excepcional carro de combate Osório,
sua maior criação e infelizmente a causa de sua falência
(apesar de ser muito avançado para sua época o Osório
não obteve encomendas de nosso Exército, que contava com
poucos recursos, e perdeu uma concorrência na Arábia Saudita
por pressão dos Estados Unidos, que vendeu para os árabes
o seu M-1 Abrams). Nos anos 80 o Brasil chegou a figurar entre
os dez maiores exportadores mundiais de material bélico. Mas
aí veio a queda do Muro de Berlim, em novembro de1989, e com
ele a dissolução da União Soviética, o enfraquecimento
do comunismo nos países onde esta ideologia era dominante e o
fim da Guerra Fria. Os países sentindo-se menos ameaçados
reduziram drasticamente seus gastos em Defesa e procuraram adaptar seu
aparato militar à nova realidade. Nos anos que se seguiram, os
Estados Unidos tornaram-se uma potência hegemônica, intervindo
aqui ou ali sem maiores oposições, com a Rússia
mais preocupada em se reerguer, juntando os cacos do que restou de seu
outrora vasto império que se extendia da Europa até os
confins do Extremo Oriente, do que apoiar seus antigos aliados. Apenas
o crescente dragão chinês possa talvez um dia lhe fazer
sombra.
Atualmente o Brasil não visualiza
antagonismos que possam vir a comprometer sua integridade como nação,
gerando uma pressão dominante, incontornável, que possa
justificar o uso da força. Na conjuntura das relações
internacionais não temos qualquer tipo de contenda maior que
possa representar uma ameaça física imediata ou de médio
prazo, razão pela qual nossa Estratégia Militar deve ser
preventiva, de atitude defensiva. Do ponto de vista geopolítico
podemos nos considerar uma nação sem ambições
territoriais, onde nossas fronteiras estão devidamente demarcadas
e sem contestações, e nossas fronteiras marítimas,
voltadas para o continente africano, têm seus direitos de livre
navegação oceânica respeitados e com a Zona de Exploração
Exclusiva (ZEE) extendendo-se a 200 milhas. Até porque nossa
índole como nação nunca foi de natureza expansionista.
Pelo contrário, no âmbito da ONU o Brasil sempre é
chamado a participar como intermediário nos acordos de manutenção
de paz, haja vista sua participação em diversas operações
deste tipo ao redor do mundo, principalmente na MINUSTAH,
no Haiti. Isto significa que não temos com que nos preocupar?
Claro que não. Se ameaça da destruição atômica
ficou no passado ou se nossos vizinhos sulamericanos hoje são
vistos como parceiros comerciais e não como possíveis
inimigos, temos que nos preocupar com os novos tipos de ameaças
que estão surgindo. A principal delas o terrorismo internacional.
As guerras convencionais, entre dois exércitos devidamente constituídos,
serão cada vez mais escassas. As guerras do futuro serão
travadas de forma assimétrica, contra um inimigo muitas vezes
menor, porém com muito mais capilaridade no tecido social e agindo
silenciosamente, muitas vezes com o apoio de países desestruturados
do Terceiro Mundo. Outra ameaça crescente são as guerrilhas
sustentadas pelo narcotráfico na Colômbia e no Peru, que
combatidas em seus países de origem atravessam as fronteiras
virtuais na região Amazônica e se estabelecem nas densas
florestas em território brasileiro. Agora a Venezuela, pelos
pesados investimentos em material militar, pelos sérios problemas
econômicos e sociais, e pela frágil sustentação
de seu governo, talvez possa ser incluída como uma ameaça
de longo prazo. Embora pouco provável no curto prazo, poderemos
no futuro enfrentar ameaças aos nossos vastos recursos naturais
e aos nossos reservatórios de água doce, que estão
entre os maiores do mundo.
Portanto, na proposta de nova Estratégia Militar para o país
vislumbramos uma mudança tanto na percepção de
ameaças totalmente diferentes das de 30 ou 40 anos atrás
quanto na direção de onde tais ameaças poderiam
atingir o nosso território. Antes a preocupação
dos estrategistas era no sentido Sul para Sudeste/Centro-Oeste, agora
é diametralmente oposta, ou seja, podem vir do Norte para o Centro-Oeste/Sudeste
do país. É perfeitamente compreensível a determinação
do Ministério da Defesa em reposicionar algumas das principais
unidades para a fronteira Norte, bem como a criação de
novas unidades e bases, inclusive com a ampliação do Projeto
Calha Norte. A Força Aérea Brasileira transferiu o Esquadrão
Poti, com os helicópteros de ataque AH-2 Sabre (Mi-35M)
para a Base Aérea de Porto Velho e criou a primeira unidade de
caça da Amazônia, com seis aeronaves F-5EM Tiger
na Base Aérea de Manaus. A Marinha tem um planejamento para criar
a 2º Esquadra baseada próximo a foz do rio Amazonas e tem
aumentado o efetivo de Fuzileiros Navais na região. Nos últimos
anos o efetivo total das Forças Armadas na região cresceu
em mais de 25.000 homens. Há uma preocupação especial
com a fronteira seca com os nossos vizinhos, que se estende por mais
de 15.000 km, com baixa densidade demográfica, pouca vigilância
e extremamente permeável, facilitando as ações
de contrabandistas de armas e drogas, além de outras atividades
ilícitas. Para estabelecer o controle e vigilância desta
imensa área foi lançado o Sistema de Integrado de Monitoramento
de Fronteiras (SISFRON), implantado inicialmente em uma faixa de 600
km, que a longo prazo cobrirá toda a sua extensão. Nossa
plataforma continental também precisa de uma atenção
especial, com o objetivo de proteger nossas reservas de petróleo,
plataformas de exploração, recursos minerais submersos,
pesca e garantir a livre navegação comercial, a Marinha
vem trabalhando no Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz),
ainda na fase de elaboração de conceitos. Muitas destas
ações estão previstas na Estratégia
Nacional de Defesa (EDN) e no Livro Branco, mas sua implantação
efetiva depende de vontade política e da disponibilidade adequada
de recursos. Tramita no Congresso uma proposta de elevar os gastos militares
a um patamar fixo de 2% do PIB, a qual se aprovada seria um grande avanço
no sentido de se garantir a continuidade dos programas e aquisições
militares no longo prazo. Por outro lado, o momento político
conturbado, com a expectativa de um processo de impeachment da Presidente
Dilma, e o fraco desempenho da economia brasileira delegam muitos destes
programas militares a um segundo plano. Como esperar estabilidade de
investimentos em Defesa quando o próprio governo não consegue
garantir a sua própria sustentabilidade? A verdade é que,
mesmo em momentos político e econômico adversos, devemos
estar preparados para enfrentar as situações de possíveis
ameaças, pois venha ela de onde vier não haverá
aviso prévio.